Maria da Graça Almeida 
dal Brasile

 

Sulcos Todas as Marias Maria Mortalha

Maria Maré 

Pela autora Entrelinhas 

Ã

Andó

A preocupação de Estela

Desengano Pouco grão Oração do poeta Moeda Os esquecidos  Filu Tonha
Zé louco                

 

Zé louco  
Maria da Graça Almeida   
  
Suado, estafado 
e vinha o coitado, 
correndo nos becos, 
fugindo do cerco. 
 
O ouvido zumbia, 
o pé lhe doía, 
morria aos pouco, 
chamavam-no louco! 
 
E o louco saía 
e o louco queria, 
sentar-se num canto, 
chorar o seu pranto. 
 
Sob pedra cruzada 
e vaia exaltada, 
ali, debatia-se, 
em franca agonia. 
 
Um dia, cansado, 
parou de correr, 
voltou-se ao povo 
e falou sem querer: 
 
- Sou pobre e roto, 
um ser aos farrapos, 
sou sujo descalço, 
mas não ameaço. 
 
Sou fome e frio, 
inteiro, um vazio, 
mas não sou estúpido, 
ainda sou lúcido! 
 
E mesmo assim, 
pobre de mim, 
dizem que sou 
louco... enfim...
 
E louco, por quê? 
Só vivo fugindo 
do ataque que é seu. 
Eu sou perseguido 
e o louco sou eu?
 

 

 

 

 

 

 
Andó
 
  Maria da Graça Almeida    
 
 
 Ó, doce Andó! 
Chapéu de ovo. 
Sujeira, pó. 
Estorvo novo: 
o paletó. 
 
Oca a barriga, 
louca a cantiga 
são referências 
muito antigas. 
 
Na língua presa, 
no jeito só, 
na pouca mesa, 
tristeza, dó! 
 
Ó, doce Andó!
Com nostalgia, 
sem fantasia, 
tenho sua fome 
bem na lembrança 
e, neste dia, 
minha poesia, 
seu breve nome, 
traz como herança.
 
Maria da Graça Almeida 
  
 
 
 
 
 

 

Tonha
Maria da Graça Almeida  
   
Tonha tão tola, 
Tonha tão boa, 
Tonha levando, 
a vida à toa. 
 
O peito arfando , 
em farta bronquite, 
fazia de Tonha, 
a Tonha mais triste. 
 
Vivia no asilo, 
num canto tranqüilo. 
usava as dores, 
e colares em cores! 
 
Tonha se foi, 
cedo demais, 
e seus colares 
deixou para trás. 
 
O peito largou 
a tosse na terra 
e, nesse instante, 
as dores se enterram. 
 
Hoje no céu, 
num fiapo de nuvem 
coloca sem conta, 
estrelas de pontas. 
 
Tonha tão tola, 
Tonha tão boa, 
Tonha se rindo, 
sempre à toa! 
 
Tonha se foi 
tarde demais, 
sorrindo, vou vê-la 
com o colo de estrelas!   
 
 
 

 

 

 

Os esquecidos 
Maria da Graça Almeida

 
Com pesar e nostalgia, 
faço versos e poesia 
a homens dos tempos idos,
por muitos já esquecidos. 
 
Quedo-me em estranheza, 
pois, só fora a natureza
-severa e imprudente-
que os fizera diferentes! 
 
Eram tipos populares, 
com trejeitos singulares, 
pelo povo, desprezados, 
destratados, pouco amados. 
 
Contudo, eu lhes percebia 
a cor da desolação, 
em todos já pressentia 
a dor da decepção. 
 
Pois a vida os concebeu 
no signo da crueldade, 
como loucos e mendigos, 
netos da iniqüidade. 
 
Hoje, suas sepulturas 
são covas rentes ao chão, 
que ferem a dignidade, 
sem data ou, outra inscrição! 
 
Quisera ali  escrever: 
"Aqui, jaz gente importante, 
que só em minha memória 
demarcou sua trajetória!" 
 
A ouro poria os nomes 
pra compensar-lhes a fome, 
assim, na eternidade, 
daqui, teriam saudade. 
 
Porém, seus nomes completos, 
no tempo viraram pó, 
só sei de seus apelidos: 
Tonha, Zé louco, 
Filu e Andó!
 

 
 
 
 

 

Filu
 Maria da Graça Almeida  
 
  Boa e preta baiana, 
em trapos de algodão, 
dentes sujos, esparsos, 
pés descalços ao chão. 
 
A velha e simples Filu 
vivia a dar muitos beijos, 
deixando-a ainda mais só, 
o puro e ingênuo desejo. 
 
Esquivando-se, sem maldade, 
a gente da minha cidade, 
magoava Filu tão no fundo 
dos olhos negros, profundos. 
 
Como casa, Filu tinha a rua, 
como teto, somente a lua, 
a cama era apenas um canto, 
a noite escura, seu manto... 
 
Um dia, de um lar de verdade, 
meu pai fez-lhe a doação 
com o dom da piedade, 
que lhe habitava o coração. 
 
Filu, então, na janela, 
sorria e mostrava que ela, 
enfim,  conquistara a alegria, 
em seus penúltimos dias! 
 
Muitos no céu hoje estão 
e, com certeza, Filu, 
correndo a beijar logo vai 
o chão onde pisa meu pai.
 
  
 

 

Oração do poeta

 

Senhor,
ajude-me a ser cuidadoso com as letras que deponho no papel. 
Jamais me deixe vacilar diante da verdade.
Não me autorize a expor meus sentimentos sob as garras da intolerância, 
sob os olhos da incerteza, sob os riscos da dúvida.
Não me permita falar ou calar apenas em defesa do próprio benefício.
Que minha pena tanto sirva para glorificar as virtudes, 
quanto para denunciar o desrespeito e a omissão.
Que por meio de minhas mãos a poesia espalhe-se balsâmica, 
levando esperança aos desesperados, encanto, aos desencantados.
Que minhas sílabas amenizem a ansiedade dos aflitos 
e preencham o vazio dos depressivos.
Que meus versos inibam as mãos portadoras de objetos contundentes
e armem a voz dos oprimidos com a coragem da opinião equilibrada.
Que meus poemas tenham eco e repitam os refrãos da crença no ser humano
e os da obediência aos princípios da convivência pacífica.
Que minhas letras jamais espalhem desalento, temor, descrédito.
Que meu verbo seja destemido, porém responsável, atento e apaziguador.
Que eu nunca me valha da facilidade da escrita para angariar aliados 
às causas indignas.
Que eu observe as letras do outro, buscando sempre encontrar acertos
e não depositando em seus erros o atestado da minha sabedoria.

Senhor, se por um momento eu confundir a medida da seriedade,
ou, perder a noção da civilidade, faça com que minhas letras adormeçam 
até que me acorde a consciência e desperte-me a observância 
para com a integridade física e mental do meu próximo.

Ponho-me às suas mãos, Senhor, com a promessa 
de tentar fazer com retidão a parte que me coube, 
a partir do momento em que achou por bem 
fazer de mim um poeta.

Que assim seja, em letras, palavras, orações,
agora e sempre.

 

 

 

Maria da Graça Almeida

 

Moeda
 
maria da graça almeida
 
No verso da moeda, a submissão.
No reverso, a dominação.
Nos perfis, oponentes ritos.
 Enquanto, subserviente,
a cara beija a mão,
a coroa castiga-a
 com imprudentes gritos.
 
Desengano
maria da graça almeida



Ai, longe vai o ido ontem,

eu, sensível, pequenina,

diferente das meninas

ressequidas do lugar.

Ai, meu passado sem mar,

rio, riacho, corredeira...

Em meu mundo de certezas,

sobre mim, enorme o teto

e bem ao lado, sem beleza,

terra, pedra e poeira.


De nascença, a goteira

a pingar melancolia,

era a lágrima a molhar

a ausência da alegria.

Ai, minha gota a ensopar

o sentir que em mim sofria!

Ai, o meu sal a temperar

uma infante nostalgia,


Vai distante a infância

e a tola esperança

que o homem amigo-irmão

dividisse a água, o pão.

Meu passado era sem mar,

rio, riacho, corredeira...

só as dores bem regadas

inda hoje trago inteiras...
 

 

 

 



 

Pouco grão
 

Terra seca,
ventre oco,
pobre  chão.
Magros sonhos,
muita boca,
pouco grão.
 
O  rei -que não sente
a seca inclemente-
só finge  não ver 
a gente que sofre,
morrendo carente,
no chão sem semente,
sem pão pra comer.
 
A água que falta
no colo do solo
que mata o grão
renasce então farta
nos olhos do homem
que teme a fome
nascida do chão.
 
Terra seca,
ventre oco,
pobre  chão.
Magros sonhos,
muita boca,
pouco grão.

 

Sulcos

maria da graça almeida 

 

 

Talvez só um riso escancarado
aliviasse o amargor do ricto
que nos  envelhece a face.
Não adianta a maquiagem.
Na solidão de um ventrículo vazio,

  na seriedade de um ventríloquo mudo,
não há disfarce que suavize
uma boca entre parênteses.

 

Todas as  Marias

 

Maria Preta

 Maria da graça almeida

Ao vestir-me todos os dias, com os panos pra abotoar,
ordenava à preta Maria, que cedo me viesse ajudar.
Chegando-me aos resmungos, jurava-me um par de palmadas,
mas, boa, a mão calejada, doía-me só quando gelada.
E, aos brados, quando a chamava, a negra atendia sentida,
dizia ser eu bem folgada, moçoila um tanto atrevida!
Fazendo graça e pirraça, fingia não a compreender,
e nem ficava vexada em usá-la a meu bel-prazer.
Porém, clareando, um dia, nos olhos ira e aflição,
entrou-me no quarto, Maria, com gorda trouxa à mão.
Trazia-me o adeus nessa hora: da luta, estava cansada...
e eu, que há pouco acordara, deixei a cama assustada.
Em vão tentei entender a brusca atitude tomada,
porque em toda a vida, não vira a negra suada.
Julgava que sendo forte, jamais lhe batesse o cansaço,
que não ficasse doente e valente lhe fosse o braço.
Pra que mudasse de idéia, até insisti com firmeza,
mas, cruel, Maria me olhava com certa e dura frieza.
Saindo sem mais delongas, bateu-me a porta do quarto,
meu olho estupefato saltou ante a falta de tato.
Debrucei-me à janela, deveras arrependida
pelos abusos diários que lhe dobraram a lida.
Aflita, de fora, chorosa, Maria olhou para mim
e debulhada em queixas, abriu-me o motivo, enfim:
- Antonte, ovi ocê falá
qui us pano de muito botão
é coisa de gente criança
e ocê num qué eles mais, não...

 

 

 

 

Maria Mortalha

maria da graça almeida

Cedo, deitou-se Maria, pronta pra logo morrer,
vestindo a alva mortalha, sem medo de adormecer.
Os olhos tanto mais fundos, coroados por olheiras,
cerravam-se moribundos, nessa hora derradeira.

Implorando-lhe ajuda, veio um moleque qualquer:
- Vó, apanha uma agulha, me tira o bicho do pé!
Servil, levanta a Maria, desvestindo a alva mortalha

e já mais morta que viva, o bicho, do pé, estraçalha.

Volta, esvaída, Maria para o bom leito de morte,
quando lhe chega a nora,chorando a fome e a sorte.
Maria, do quarto, dormente, sai e aquece o fogão,
serve-lhe o leite fervente e duros nacos de pão.
Com a fome, então, saciada e o corpo fortalecido,
parte a jovem senhora com olhos agradecidos.

Maria, assim, novamente, põe-se no leito de palha,
julgando que,certamente, não mais tiraria a mortalha.
E eis que lhe chega a vizinha com um pote tosco à mão.
Queria do sal, só um pouco, que lhe salgasse o feijão.
Maria deixa o leito... que a Morte espere um instante...
pra atender a boa vizinha, ergueu-se, mesmo ofegante.
Bem cheio o pote de sal, a dona vai-se embora.
Maria, já fria, descora e aguarda, da Morte, a hora.

A Morte que vinha chegando, notou-a em pele ardente,
porém, percebeu que a lida, tornara Maria valente.
Vendo a mulher à espera, recolhida em seu leito,
ordena que se levante e atenda-a com medo no peito.
Maria coloca, surpresa, os olhos esbugalhados
sobre as vestes que a Morte trazia em trapos rotos, rasgados.

A Morte impõe, soberana:-Sobreviva só mais um dia,
ainda que condenada, cosa-me a capa, Maria!
E apontando-lhe as entranhas, ressecadas e vazias,
exige-lhe que, ao fogo, torne, o leite, que frio jazia.

Maria salta do leito, arranca a tal da mortalha
e sem mesura ou respeito, rebelde, à Morte, detalha:
- Em face dos desmandos alheios,
viverei mais um ano e meio.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria Maré

maria da graça almeida

Entardecida, Maria Maré,
plantada no chão, firmada na fé,
trazia o pé fincado na areia,
a impedir a maré de cheias mais cheias.

Nos olhos brilhantes, duas luas inteiras,
no peito maduro, a vontade e meia:
- Que Deus me acate, atenda e acuda,
só hoje e sempre lhe peço a ajuda!

E Deus, que lhe dava a boa mãozinha,
nunca a deixava na praia sozinha,
com todo cuidado, zelo ou desvelo
trazia-lhe a água só pelo joelho.

Até que um dia, Maria folgou
e bem nesse dia a Deus não rezou!
Maria, a lua, fitou nesse instante
e o mar se achegou, então, ondulante,

Com força, as ondas se avolumaram,
bravas e impunes mais espumaram,
líquidas línguas lamberam o solo,
querendo deitar, de Maria, no colo.

Rugindo, o mar galgou-lhe as pernas
e pôs-se alargado em gotas eternas,
incauto, molhou-lhe o xale, a saia,
subindo às casas e ruas da praia.

Hoje as águas de vez soberanas
abundam com os pingos que ainda emanam
da estátua de sal que chora saudade,
compadecida da antiga cidade.

A lua no céu sorri zombeteira
e exalta o dia em que, sorrateira,
enlevando Maria, distraiu-lhe a fé,
fazendo perpétua a cheia maré.

 

 

maria da graça almeida

 todos os direitos reservados

 

Pela autora

 

Nasci há um punhado de anos, em Pindorama/SP,

bom lugar para o nascimento de um poeta.

Ainda muito jovem, São Paulo, capital tomou-me por empréstimo

do meu primeiro palco inspirador, sem data prevista para devolução.

Sou Educadora, Pedagoga e formada em Educação Artística.

Escrevi vários livros destinados às crianças, preocupada

em fazê-las descobrir o gosto pela leitura.

Na linguagem poética torno minha mensagem acessível a todos,

uma vez que a apresento de forma natural e de fácil compreensão.

Meus versos traduzem-me a vivência, revelam as pessoas

que comigo trilharam as mesmas estradas,

contam de sentimentos e de inúmeros questionamentos dos fatos do cotidiano.

Para uma apresentação de melhor resolução,

diria que sou um poeta didático. Ainda que, apesar da atual controvérsia,

prefira termo poetisa.

 

Entrelinhas


Entregue-se ao solo do destino
e ao colo da poesia paraíso;
não fique à margem do caminho,
nem desbrave a terra do sozinho.

Molde o verso em redondilha,
com o cuidado de um santo,
pudores, recato e canto,
véus, capas e cantigas,
na mudez do doce segredo
de um recôndito desejo.

Faça do poema um verbo silente
e apenas o sustente,
provando-o com jeito,
posto que o pecado é um defeito
que todos os anjos têm medo.

Deixe-o renascer -num suave pranto,
sem testemunhas, com manto-
de um soluço de doçura,
que o sossegue da sua sede
de carinho e ternura.

Faça da palavra de candura
um tapete de suspiros,
onde cada amargura
adormeça sem gemidos,
e sem o insano perigo,
que impõe toda procura.

maria da graça almeida  

 

 

 

 

Ã?


  Maria da Graça Almeida 
 


  Dançarolava o susto,

  nas cantigas do trovão.

  As mãos retorciam arbustos,

  os pés, o manjericão.

 

  Nos cachos, suave a melissa,

  erva doce, a hortelã,

  nos lábios, a doce carícia,

  do perfume da maçã.

 

  Nos olhos, um frágil deleite,

  a magia do amor,

  uma aura, luz- enfeite,

  espelhando clara cor.

 

  Mas, ao sol do meio dia,

  bem se via o afã

  da mulher sem poesia,

  sem aromas, sem manhãs.


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A preocupação de Estela
maria da graça almeida 
 

Estela acordou-se inda cedo,
pulou da cama sem medo
do frio que fazia lá fora.

Os pés miúdos, descalços,
folgados dos velhos sapatos,
correram o quintal sem demora.

Estela na horta adentrou,
abriu depressa o portão,
que rangeu sem má intenção.

O portão deu-lhe bom dia,
porém, sua sintonia
denotou preocupação.

Estela olhou as verduras
com muito amor e doçura,
afagando-as com as mãos.

Julgou que a alface tão crespa,
mais ficara arrepiada,
temendo o vôo das vespas.

Acenou para os legumes,
que, revelando ciúme,
cobravam sua atenção.

Preocupou-se com o tomate,
julgando que a face corada,
queimara-se na madrugada.

Achegou-se à berinjela,
que, roxa, pareceu a ela
ter a cor da aflição!

Jurou que um certo duende
houvesse pintado listrinhas
no corpo da abobrinha.

Isso assim era demais!
Voltou pra casa, correndo,
nem sequer olhou pra trás.

Na sala entrou sem demora,
pedindo à mãe, nessa hora,
de presente uma porta.

E durante a madrugada,
pelos amigos da horta,
trocou o portão pela porta.

maria da graça almeida
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